quinta-feira, 23 de junho de 2011

Conheça o meu primeiro livro

O livro "Vaidades, contradições e alguns quilos de argila" foi escrito por mim e pela jornalista Beatriz Nunes e buscou, pela linguagem do jornalismo literário, narrar fragmentos da vida e do trabalho de seis jovens artistas sorocabanos: Renato Gommes (ator), Flávia Aguilera (artista plástica), Natali Hernandes (fotógrafa), Renata Cunha (escritora), Hugo Rafael (músico) e Jorge Cury (bailarino).

Link para comprar o livro: 
iTunes - https://goo.gl/p1buLE
Clube dos autores (livro impresso) - https://goo.gl/7Npa3E
Google Books - https://goo.gl/JJjwqG


Arte da capa: Flávia Aguilera

As entrevistas ocorreram entre janeiro e março de 2012, com atualizações pontuais realizadas no início de 2013. Além dos artistas que compõem o eixo principal do livro, foram ouvidos profissionais de diversas áreas relacionadas à cultura, como jornalistas, empresários e diretores de teatro, formando uma espécie de mosaico do fazer artístico na cidade de Sorocaba. O último capítulo é um serviço, exibindo dados de diversas instituições culturais de Sorocaba para quem deseja conhecer melhor as áreas abordadas.

Ficha Técnica


"Vaidades, contradições e alguns quilos de argila"

Autores: Luiz Fernando Toledo e Beatriz Nunes

Lançamento: 2012

Sem editora

129 páginas


Leia, a seguir, o capítulo 2.2 da artista plástica Flávia Aguilera e deixe suas críticas e/ou sugestões. Caso tenha interesse em adquirir o livro completo, entre em contato pelo e-mail luizf.toledo@live.com



2.2 Flávia Aguilera




 “Prefiro comprar 40 quilos de argila do que um sapato”

Os olhos contraídos da artista plástica Flávia Aguilera encontram no centro da face um nariz que parece ter sido esculpido em marfim. A boca, que se move no ritmo de suas palavras entonadas em melodia de contralto, revela em instantes tímidos um sorriso de sinceridade. Outrora, em tom mais ríspido, uma curiosa retórica de preocupação social, gesticulada como ninguém. Tal harmonia poderia referenciar a calmaria impressionista de uma paisagem de Monet[1], contrastando com a sátira de Goya[2]. Claro, sem a depressão do primeiro nem a turbulência do segundo. E nada disso é suficiente para que a sorocabana de 25 anos pose para uma foto com boa vontade, resultado de um profundo desligamento de seu "eu", isento de narcisismos e estrelismos superficiais.

Somos recebidos na Mansão, uma conhecida casa dos sorocabanos sedentos por novidades do universo da arte e sede do coletivo cultural Rasgada Coletiva. Apesar do nome, trata-se de um imóvel simples, praticamente invisível em relação aos vizinhos. Uma casa qualquer, alguém diria. Em seu interior, paredes repletas de colagens e desenhos produzidos pelos artistas que frequentam o local. A sala principal possui somente um sofá, que acomoda um grande quadro iluminado por uma luz fraca. É lá que o público se amontoa para assistir aos shows de bandas undergrounds da região e até mesmo de outros países. Além da música, o coletivo também oferece eventos de dança, oficinas literárias e workshops de fotografia gratuitos, fomentando a produção e apreciação artística em Sorocaba. Um verdadeiro esconderijo de preciosidades, que talvez revele o verdadeiro significado do termo “mansão".

Na cozinha, cômodo escolhido para a entrevista, nenhum detalhe luxuoso. Ao invés de flores e guardanapos pintados, que seriam comuns na decoração de um local designado às refeições, o que nos rouba a atenção é a presença de um grande número de adereços, como discos de rock alternativo espalhados pela pia e um quadro que trazia um desenho da banda Mars Volta, trabalho da artista plástica Juliana Moraes. 

Acomodados em um sofá rasgado, observamos Flávia se distrair com uma máscara de argila feita por ela, que parecia clamar por alguma resposta que ninguém possuía.

Minutos antes, Flávia dava aula de arte no local, profissão que costuma chamar de "principal", à frente da produção enquanto artista. A bagunça, característica notável em todo o ambiente, foi justificada.

"Vivo assim. Em todos os lugares. Meu quarto é desorganizado, minhas pastas são uma confusão. Gosto de colecionar coisas diversas. Sempre que vejo algo bonito no chão, como uma folha seca, eu costumo guardar para usar em trabalhos futuros". Certa vez, encontrou um pássaro morto e julgou que sua asa possuía uma beleza atípica. Foi o suficiente para que a recortasse: “um dia vou usá-la em alguma obra minha”.


Como pensa um artista


Tal forma de pensamento, sem lógicas compulsivas de organização, já havia sido alertada por Lúcia Castanho, professora de Flávia no curso de Artes Visuais da Universidade de Sorocaba (Uniso): "Ela pensa como uma artista. Sua linha criativa é fantástica". Mas o que significa pensar como artista? A primeira resposta chega em uma expressão facial de surpresa. A jovem parece em dúvida se fica animada por ter sido indicada positivamente por uma professora que admira tanto, ou se "pensamento de artista" realmente caberia ao seu processo criativo. Em alguns segundos, não escondendo a timidez, esboça com sinceridade: "não sei exatamente o que ela quis dizer com isso. Talvez seja porque eu não gosto de etapas. Para mim, não existe um processo exato para se criar uma obra de arte. Se um aluno me pergunta se pode usar canetinha, minha resposta é positiva. Se ele quiser usar cuspe e sangue também, será tão positiva quanto", reflete. 

"O importante é que, seja lá qual for a ferramenta escolhida, o autor deve estar pensando em seu objetivo, no que ele quer dizer com aquilo que está produzindo. Talvez esse seja o pensamento do artista".


Obras que são sentidas


As obras de Flávia parecem não ter um sentido no momento em que as observamos. São traços disformes e rabiscos sem conexão, mas que com uma apreciação mais profunda, começam a ganhar significado. “Tudo que o artista propõe será sentido por ele e por seu espectador, mas de formas diferentes”, analisa. Para a jovem artista, qualquer obra de arte busca um sentido, então esta deve ser racionalizada e sentida ao mesmo tempo. “A razão e a emoção da obra não agem isoladamente”.

Um dos desenhos exibidos no perfil da artista em sua página pessoal no Facebook (à esquerda) chamou a atenção de amigos e curiosos, que comentavam e questionavam o seu significado. São traços de um lápis que parecem não se encontrar, vagamente lembrando o corpo de um homem que segura uma espécie de quadro ou gravura nas mãos, com um rosto desenhado. Ao contrário do "provável" homem, o quadro traz detalhes mais precisos do rosto, como boca e orelhas. Para Flávia, a diferença entre a uniformidade do quadro e a desconstrução do homem exemplifica o que ocorre na internet: "as pessoas adoram formar definições delas mesmas através da internet e das redes sociais. Elas querem criar características definitivas de si, por meio de fotos totalmente montadas e editadas. Quando alguém compartilha um vídeo com uma música, essa pessoa não quer somente divulgar a música. Ela quer que as pessoas saibam que ela gosta daquele artista e que isso faz parte dela. Eu não acho que as pessoas sejam assim, definidas. Elas são como o homem rabiscado do desenho, complexas e sem traços exatos. Podem me conhecer em um dia em que estou de bom humor e simpática. Mas também posso estar revoltada com a vida e não ser muito educada. Não se trata de ser, mas de estar".


A internet no meio artístico


As redes sociais têm fornecido grande ajuda na divulgação dos desenhos e esculturas de Flávia. "Conheço artistas do mundo todo e, ao mesmo tempo em que compartilho a obra deles, eles também mostram a minha por lá". A artista participa com frequência das conversas que se desenrolam nos comentários de suas próprias fotos, entre elogios e prováveis interpretações de seus desenhos, pinturas e esculturas. Apesar da intervenção, ela gosta de reforçar: "a interpretação é de cada um". 

Se por um lado o ambiente virtual é favorável aos artistas, por outro ele pode prejudicar a memória ao longo dos anos. "A arte do passado ficou, mas a nossa vai desaparecer"; A preocupação de Flávia é com a imaterialidade do produto artístico. "Muitas vezes vemos que um quadro que foi divulgado na internet nem existe mais, ficando apenas no registro fotográfico. Não há muita preocupação em mostrar o produto, em visitar museus, pois alguns se satisfazem simplesmente com a visualização por trás da tela de um monitor".

Apesar da crítica, ela própria demonstra certo desapego pela própria produção, evidenciando que também é filha desta geração que descarta as coisas rapidamente. "Sou apaixonada pela minha arte no momento em que estou produzindo. Depois de finalizar, jogo muita coisa fora. Não guardo nem vendo, até porque não sei dar preço para as minhas criações. Se uma pessoa gosta muito de um desenho que fiz, eu penso em por que não dá-lo a ela. Não acho justo cobrar por isso, já que eu tenho tanta facilidade em criar".


A morte é universal


A representação da morte é constantemente apresentada por Flávia em seu trabalho. Tal excentricidade, como muitos chamariam, é leve para a artista, que entende o processo como uma “exposição de sentimentos de dentro pra fora”. “Se fossem analisar minha personalidade pelos desenhos, provavelmente me imaginariam como uma menina que vive em um porão. Querendo morrer”. Não que o desejo pelo fim da vida jamais tenha passado por sua mente. “Já quis muito morrer. Principalmente aos 17, naquela fase em que tudo parece estar errado. No réveillon, meu desejo para o próximo ano era que eu morresse”. Ela chegou até mesmo a arquitetar planos de como contratar alguém que pudesse lhe matar, angariando fundos para o feito, que obviamente não chegou a ser concretizado.

“Para mim a morte é universal. É uma preocupação de todos. Pensamos nisso o tempo todo. Apesar de tudo, eu tenho medo dela”. Seus desejos mórbidos são fruto de uma crítica social que a acompanha desde que viu o pai abandonar as esculturas que tanto gostava para trabalhar em uma empresa, em busca do sustento familiar. “Essa forma cruel em que o sistema trabalha me frustra, às vezes. Meu pai poderia ter sido um ótimo artista, mas a máquina freou seus sonhos, assim como os de tantas pessoas”. O semblante agora é outro. Mais rígido.


A arte como profissão


Flávia é professora de artes em um colégio particular de Boituva. O sustento, por mais que não seja diretamente relacionado à produção que tanto gosta, não foge de seus interesses, além do fato de que não lhe ocupa tanto a ponto de não conseguir desenhar ou desenvolver suas esculturas. “Jamais trabalharia com algo que não me permitisse produzir, pois este para mim seria o fim. Alguns encontram a razão da vida na matemática, outros na administração. Eu a encontrei na arte”.

Sua ligação com a arte não acaba no ambiente produtivo. Mesmo quando não está criando nada, a artista diz conversar sobre arte com os amigos. “Isso acaba filtrando as amizades, de certa forma. Quem não gosta muito desse meu ritmo, simplesmente se afasta”. E a atenção tão focada no assunto existe desde os tempos do primário. “Não consigo pensar num ponto inicial da minha trajetória, porque na verdade eu sempre desenhei, desde que me conheço por gente. Na escolinha eu já pintava e dizia a todos que queria ser desenhista quando crescesse”.


“Arte é combinar sofá e tapete”


A artista sabia que se tratava de uma escolha difícil: "as artes plásticas são menos acessíveis que as outras artes como o teatro e a música, por exemplo. A música já vem pronta, quem não gosta? O teatro diverte instantaneamente, apesar de exigir certa reflexão posterior. Mas a pintura, o desenho, tudo que é visual e estático, exige reflexão. As pessoas só enxergam que a imagem causa desconforto e não querem mais saber daquilo. Não procuram saber o porquê do desconforto, que é a principal provocação de uma pintura. Para o povo, muitas vezes a arte significa combinar o quadro com a cor do sofá e do tapete", reclamou.

A revolta com um sistema que privilegia a estética do belo e socialmente aceitável se evidencia em cada detalhe das vestes de Flávia, além dos objetos que a rodeiam, como uma porção de livros de filosofia sobre a mesa. O moletom estampado em tom pastel parece muito confortável e despojado. Sem demonstrar nenhum tipo de vaidade, um brilho oculto paira no olhar da artista, ora desviando para sua máscara de argila, ora para o amontoado de CDs espalhados. 


“Fica rico quem ganha o reality show”


Lembranças sobre a carreira do pai e a discussão sobre a arte como produto mercadológico provocam Flávia como se aquilo a atingisse fisicamente. Mais exaltada do que durante toda a entrevista, inicia um discurso que parecia fresco em sua memória, mas não decorado.

“Até o lazer está inserido na lógica do capital. É preciso se divertir com teatro e cinema para que no dia seguinte se trabalhe com mais ânimo. Retornamos para casa, vemos um capítulo da novela e sonhamos com os vestidos e acessórios das famosas, desejando uma vida como a delas. Isso faz com que busquemos mais trabalho, mais dinheiro e, consequentemente, mais infelicidades com a frustração de nunca ficarmos parecidas com a atriz. Hoje fica rico quem ganha o reality show da TV ou recebe herança. O esforço é deixado de lado. Minha arte busca esta expressão. Ela grita por esse mundo que sufoca".

A cozinha, que desde o começo já não trazia ares de gastronomia, mas de arte, agora parecia ter se transformado em uma assembleia. A cadeira de Flávia aos poucos se moldava como um palanque. Em consonância ao pensamento de que artista também é um político, a jovem proferiu uma frase que poderia considerar a máxima de seu trabalho e atitude: "Prefiro comprar 40 quilos de argila do que um sapato!". A máscara que clamava parece ter encontrado a sua resposta.



[1]Oscar-Claude Monet, pintor francês que retratou belas paisagens em suas obras
[2]Francisco José de Goya y Lucientes, pintor espanhol que ficou conhecido como “o Turbulento”