segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Toque e repulsa

Uma das experiências mais enriquecedoras que tive entre 2009 e 2011 foi um curso de artes cênicas que participei em uma instituição de minha cidade, Sorocaba (SP). Para perder a timidez, a princípio, mas logo percebi que havia muito mais a ser absorvido por ali. Dentre nossas atividades, lembro com detalhes de um projeto, que não pode ser finalizado por questões administrativas, em que os alunos poderiam criar textos com a temática "sexualidade". O objetivo era explorar o assunto de todas as maneiras possíveis, desde o módulo mais didático (uso de preservativo, DST) , passando pela comédia criada pelo tabu (sexo virtual, papo entre amigos), até às perversões que se desenvolveram na sociedade ao longo dos séculos. A pedofilia, por exemplo.


Imagem: Asbeiras.pt

Sobre este último, escrevi um texto que nunca foi aos palcos italianos, mas que guardei com a pretensão de torná-lo utilizável algum dia. É um pouco "pesado" e talvez precise de adaptações que naquele momento eu não havia pensado. Mas, convenhamos, nada que aborde a pedofilia pode ser leviano. Se não choca, alguma coisa está errada. Causa repulsa, sim, mas refletir sobre esta sensação é o principal objetivo, assim como faz o escritor Chuck Palahniuk.

A cena é a seguinte: professor de música e menina, em seu primeiro dia de aula.


Toque e repulsa


(Menina entra na sala do piano. Curiosa, acomoda-se e começa a brincar com o instrumento. Passado alguns instantes, entra o professor, e ela se assusta. Os dois se olham por um instante e ele sorri para a aluna. Ao fundo, um casal com roupas sensuais dançando valsa)


Professor: Chegou cedo!

Emily(insegura): É...eu acho que sim. Sim senhor.

Professor: E vejo que já está se familiarizando ao instrumento. (em tom irônico)

Emily: “Desculpa”, é que...Não sei, tive vontade de toca-lo e ver como é.

Professor: Entendo. E como é seu nome, querida?

Emily: Emily. (o professor se aproxima dela)

Professor: Ah, sim, lindinha.(ambos ficam em silêncio, a menina olhando para o chão, e o professor olhando para ela. Num momento súbito, ele toma a fala)
Bom, sente-se, não queiramos nos atrasar, não é? E você tem muito a aprender nesta aula.
(Emily acena que sim com a cabeça, ainda tímida, e se acomoda em frente ao piano)
Muito bem, querida.

Emily (acalmando-se): Mamãe quer muito que eu aprenda a tocar.

Professor: Conversei com ela por telefone. Pareceu muito satisfeita com o início das aulas de piano.

Emily (triste): É.

Professor: E como todo bom pianista, deve começar cedo. Mozart já compunha aos cinco anos. Chopin, aos sete, já era autor de duas polonesas. Quanto mais nova, melhor, queridinha! São mais disciplinados, mais sensíveis. Suas mãozinhas deslizam suavemente pelas teclas do piano. E como tocam com inocência, com leveza, com brilho!

Emily: E o senhor acha que eu vou aprender?

Professor: É claro que sim, meu anjo. Vejo talento em seus olhos.

Emily: Em...meus olhos?

Professor: Sim, sim, seus olhos. Então, podemos começar?

Emily: Podemos.

Professor: Antes de tocarmos, gostaria de conversar um pouquinho com você. Só te fazer algumas perguntinhas, querida.

Emily: Sim senhor.

Professor: Antes de tudo, vamos fazer uma brincadeira. Sabe ler e escrever?

Emily: Sim senhor.

Professor: Trouxe o seu caderninho?

Emily: Sim senhor.

Professor: Não gosto que me chame de senhor. Isso nos afasta. Como professor e aluna, é importante que exista uma intimidade entre nós. Me chame de, hum...Lúcio.

Emily: Sim senhor.

Professor: Lúcio!

Emily: Lúcio.

Professor: Perfeito. Agora pegue seu caderninho, e anote o que irei lhe perguntar. (Emily balança a cabeça positivamente) Pergunta número um: quem é Emily? (o professor aguarda, pergunta a pergunta, a aluna anotar) Pergunta número dois: Do que a Emily gosta de brincar? Pergunta número três: Por que a Emily quer tocar piano? Perg...

Emily: Tio Lúcio, minha mão já ta doendo.

Professor: É só mais uma, meu anjo. Eu prometo.

Emily: Tá bom.

Professor: Pergunta número quatro: O que a mamãe da Emily faz que ela mais gosta?

Emily: Eu gosto de historinhas e de bolo de chocolate!

Professor: Calma, calma. Ainda não é pra responder, meu anjo.

Emily: Ahh, desculpa, tio Lúcio. É que eu gosto muito muito de bolo! E a minha mamãe me conta historinhas todo dia!

Professor: Que bonitinho. Vamos continuar! Agora, quero que você leia a pergunta um, depois feche os olhos e fale bem alto o que pensar. Entendeu?

Emily: Tá bom, tio Lúcio.

Professor: E a pergunta um é...

Emily: (um pouco de dificuldade ao ler): quem...é...Emily?

Professor: Isso, agora quero que você feche os olhinhos e responda como combinamos.

Emily: Tá. (gritando): Eu sou a Emily! Eu gosto muito muito muito muito de bolo, de brigadeiro e de festa de aniversário. Meu papai me prometeu que quando eu fizer oito anos, vai ter uma festa “bem bem bem bem” grande. O senhor quer ir, tio Lúcio? Vai ter um montãããão de amiguinhos meus que eu vou convidar.

Professor: Eu adoraria, minha querida. Gosto muito de crianças. Agora leia a pergunta número dois.

Emily: Pergunta número dois: Do que a Emily gosta de brincar?

Professor: Os olhos,docinho. Feche os olhos.

Emily: Tá bom, tio Lúcio. Eu gosto de brincar de casinha e de roupinha.

Professor: Roupinha?

Emily: Ééé, tio Lúcio! A minha mamãe compra um monte de roupas bonitas eu coloco elas e depois eu...
(o professor não se contem e começa a esboçar um sorriso pervertido, e a interrompe)

Professor: E depois você...?

Emily: E depois ela tira um montão de fotos de mim, tio Lúcio. A minha mamãe gosta de tirar fotos, ela diz que eu sou muito bonita.

Professor: E você é mesmo, fofinha. Pergunta número três?

Emily: Pergunta número três: Por que a Emily quer tocar piano? Eu quero tocar piano porque a minha mamãe acha bonito e eu quero que ela fique feliz comigo!

Professor: Então você gosta de agradar a sua mamãe?

Emily: Gosto sim, tio Lúcio! Muito!
(o professor não consegue mais disfarçar que está inquieto e excitado com a situação) Pergunta número quatro...

Professor: Não precisa mais falar alto, Emily querida. Venha um pouco mais perto de mim.
Emily: Ta bom, tio Lúcio. (aproxima-se dele e coloca a mão em sua perna. O professor demonstra excitação pelo olhar). Pergunta número quatro: O que a mamãe da Emily faz que ela mais gosta? Eu já faleeeei, eu gosto de boooolo e que me conte historinha.

Professor: Se você fizer tudinho como eu disser na nossa aula e aprender direitinho, eu vou te dar bolo de chocolate, você quer? E te conto uma historinha também.

Emily: Eu querooooo.

Professor: Então quero ver você bem comportadinha. Agora, vamos conhecer o piano. Coloque as suas mãozinhas nele. Aqui(o professor passa a mão dele por trás da menina pra ajustar a mão direita dela). Agora, a mão esquerda. (ele puxa a mão da menina para onde deverá ficar). Isso! (Emily coloca as mãos e olha para o professor, com cara de surpresa, e ao mesmo tempo, animada)
Como eu te falei, lindinha, o piano é um instrumento de sensibilidade, algo que menininhas como você têm, e muito. Então quero que você toque bem de levinho, bem fraquinho. Nessa posição que eu te ensinei, bem devagarinho.

Emily: (toca com muita força) Assim?

Professor: Não, meu amor. Assim. (e toca o correto. Depois, coloca as mãos da menina na posição e toca segurando as mãos dela. Em seguida, a menina tenta de novo,mas erra novamente) Ainda não! Vamos tentar o contrário: quero que coloque muita força, mas só na mão esquerda (Ergue a mão esquerda pra mostrar pra menina), e toque bem de leve com a mão direita. Assim (demonstra).

Emily: (tenta, erra de novo) é muito difícil, eu não consigo.

Professor: Olha. É bem simples. É como dar um abraço. Você sabe abraçar, menina?

Emily: Eu sei. Eu abraço a minha mamãe todo dia.

Professor: Então venha mais perto de mim. Quero que me dê um abraço.

Emily: Eu adoro abraço!

Professor: Primeiro, um abraço bem leve, bem calmo. (ela abraça) Isso! Agora, quero que você ponha muita força no abraço, quero que me agarre com força! (outro abraço) Exatamente. Viu como é fácil? Tente mais uma vez, vou te ajudar agora. (os dois continuam tentando, até que a menina se irrita)

Emily: Ahhh, tio Lúcio. Eu cansei. Não quero mais fazer isso, é muito chato.

Professor: Está bem, vamos parar um pouquinho então. Vamos brincar de alguma coisa que você goste muito muito muito, que tal?

Emily: ebaaaaa!

Professor: E depois, eu vou te dar um bolo de chocolate bem gostoso.

Emily: Eu quero, eu quero!

Professor: É o seguinte, querida. Eu vou ali e já volto. Vai brincando com o piano enquanto isso.
(música de fundo...remetendo ao mal...A menina começa a bater no piano, até que se cansa, e começa a brincar com o próprio cabelo. Nisso, o professor chega, com uma câmera em mãos, e tira uma foto de Emily)

Emily: Ai meu olho! O que é isso, tio Lúcio?

Professor: Roupinha. Ou melhor, vamos brincar de roupinha. Eu vou tirando fotinhos suas, e você muda a sua roupinha, até descansar, aí a gente volta a estudar.

Emily: Mas eu só brinco disso com a minha mamãe, eu tenho vergonha.

Professor: Não precisa ter vergonha de mim não, querida. Você está gostando da minha aula?

Emily: To sim!

Professor: E gostou de mim também?

Emily: Gostei, tio Lúcio!

Professor: E o que foi que a gente combinou?

Emily: O que foi?

Professor: Vou perguntar de um outro jeito...Você lembra que eu falei que ia te dar o bolo que você quer, não lembra?

Emily: Aham, eu quero bolo.

Professor: E o que você tinha que fazer?

Emily: (meio sem graça) o que o senhor mandar, tio Lúcio.

Professor: (mais severo, mas ainda carinhoso) Ótimo, lindinha. Então venha para cá, e vamos tirar umas fotos. Eu quero que você levante a sua blusinha.

Emily: Mas não é assim que eu brinco, tio Lúcio.

Professor: Assim é mais divertido, vamos lá. É só levantar, e eu tiro a foto. Depois deixo você ver todas, se quiser, e a gente corre comer um bolo, ok?

Emily: Mas eu tô com muito frio, tio Lúcio. E tenho medo. (começa a soluçar, querendo chorar)

Professor: Então eu vou ter que contar pra sua mamãe que você não me obedeceu nas aulas. Ela vai ficar muito triste com você, não vai mais fazer sua festinha, e seu papai vai ficar muito chateado também. Você quer isso?

Emily: Não, eu não quero magoar a minha mamãe. (começa a chorar)

Professor: Então vamos brincar de roupinha.

(por uns instantes, Emily soluça e fica no tira-não tira...Música ao fundo. Quando ela começar a realmente erguer a blusa, as luzes se apagam)






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