Pequenas observações: Tema polêmico não costuma ser meu alvo neste blog. Ou, sendo mais específico, prefiro não tomar partido nas discussões em que exista uma dicotomia clara (mesmo que falsa), quando um lado busca apenas execrar aquele que se opõe a ele, evitando transitar pelo caminho discursivo entre um e outro. Quando comentei a respeito das drogas (lícitas e ilícitas), por exemplo, limitei-me a lamentar pela dependência emocional que alcançamos (por uma série de motivos), a ponto de precisar debater e defender o uso de produtos que alteram nosso estado mental, já que o viver não nos basta mais. Da mesma forma, quando pela primeira vez entrei no tema "política", acanhei-me às palavras que apenas indicavam mais perguntas do que respostas.
Enfim, "tomar partido" das causas é perigoso (mas ousado) e sempre estará sujeito a mudanças. Deve-se evitar que os paroxismos inerentes às lutas nos distorçam acima da razão, que deveria ser a única ferramenta útil ao debate. Mas sabemos que o ser humano não é assim.
Postas estas linhas introdutórias, adentremos o tema do documentário: os limites do humor. Não é preciso assistir a mais de 10 minutos do vídeo para saber a posição de seu autor: piada tem sim seu limite, na visão dele. Tal argumento fica óbvio na divisão de tempo entre os favoráveis e os contrários à "auto-censura" em shows de comédia, além da forma como o tema é colocado, sob a visão de intelectuais para defender o que é certo e dos humoristas para escrachar o que é errado. Tenho pontos positivos e negativos a dizer sobre o tema e o documentário, no geral, mas minha primeira crítica fica aqui: não é um debate, pois debates têm lados com igual espaço de tempo e condições semelhantes. O que ali se observa é uma opinião unilateral.
Coloca-se a piada, como nas palavras no depoimento do deputado Jean Wyllys (PSOL), como um instrumento político. Postas assim, na visão dele, tornam-se disseminadoras de um discurso que o comediante traz em seu repertório. Outro argumento passado e revisado é que se alguém ri de uma piada preconceituosa, é porque não pensou a respeito daquilo que está sendo o alvo dessa piada. Para amarrar mais estes conceitos, recortes de piadas com "discursos conservadores" de conhecidos comediantes como Danilo Gentili e Rafinha Bastos são recorrentes nos 50 minutos deste documentário.
Costumo concordar com cada um destes intelectuais nos temas que eles trazem à sociedade. Wyllys é um dos principais deputados do Brasil e, ao menos a que veio - a causa LGBT - cumpre seu papel de maneira brilhante e ética, a despeito daqueles que proliferam um discurso preconceituoso e "dos bons costumes". Com as mesmas palavras, respeito e divido das opiniões gerais do cartunista Laerte. Confesso que mudei minha visão sobre aspectos gerais da divisão de gênero entre homem e mulher após assistir e ler algumas entrevistas dadas por ele (ou ela).
Mas neste vídeo eu discordei. Dos dois. E justamente por concordar com eles em tantos aspectos (que acredito, sejam fundamentais pelas causas que lutam), decidi escrever este texto, que imagino, receberá mais críticas que elogios de quem o ler.
A questão central é que, para estes pensadores, o problema do humor é que, ao invés de transgredir o óbvio e poder realmente se apoderar do chamado "politicamente incorreto", o humorista acaba concordando com o senso comum e proliferando este discurso como uma verdade. E o pior: mascara este conservadorismo com a famosa frase de que "é tudo uma piada". Pois aí entra o que acredito: é uma piada sim. E se está carregada de qualquer resquício de perversidade, é porque o público não está preparado para ela e não porque o artista é preconceituoso. (com exceções, é claro)
O riso proveniente de uma piada "preconceituosa" não parte da concordância, mas do absurdo. Ela não endossa uma normalidade, mas a distorce para que tomemos conta de como determinada coisa é errada (ou simplesmente nos lembremos de como aquilo é ridículo). Se não por meios racionais, por conta da redução ao máximo da estupidez humana. Quando o comediante faz aquela piada que ofende alguém, ele não concorda com o que está sendo dito. E ninguém deveria concordar. Mas mesmo discordando, ambos (público e artista) sabem que aquela realidade existe e que é bastarda e por isso riem. Ninguém acha que negros e macacos são semelhantes, assim como ninguém deve pensar que o racismo é uma mentira. O humorista, quando ri disso, sabe que está falando uma tremenda bobagem e é exatamente por isso que as pessoas riem dele. Como diz um dos que comentam no documentário (e como já argumentei em outro texto falando sobre preconceitos), não é modificando ou proibindo palavras que se modifica uma realidade perversa. A linguagem é consequência do convívio social e é só por meio da mudança da realidade é que se muda o vocabulário e não o contrário. Não basta pedir para que não chame alguém de preto, viado (ou qualquer palavra considerada ofensiva para alguns), puta, enfim, pois a palavra é apenas reforço de um preconceito já existente na sociedade. Muda-se a visão sobre estes indivíduos, as ofensas perdem o sentido, a língua muda. O processo é inverso.
Veja aqui trecho deste artigo a respeito dos chistes (termo encontrado na obra de Freud que se refere a uma espécie de "fuga" de nosso inconsciente) e do humor:
"No caso do humor, poderíamos dizer que ser humorado (já que dizer “bem-humorado”
seria uma redundância, segundo Ribeiro), é sinônimo de conseguir fazer limonada dos limões, rir de si mesmo, tornar cômico aquilo que pode ser vivenciado, em alguns momentos, como trágico em nossas vidas."
Ainda segundo Maria Ribeiro, autora do estudo "Do trágico ao drama, salve-se pelo humor":
"Os analisandos que, durante o percurso analítico, conseguem ter atitudes mais
amenas, ternas e afetuosas consigo mesmos, que conseguem rir dos próprios
tropeços, sem duvida, caminharão no sentido de se afastarem da fatalidade na qual
se encontram."
(grifos meus)
Neste imbróglio, fica clara a individualidade das pessoas ao definir o que acham que deve ser engraçado e o que não deve. A própria blogueira Lola (que gosto e acompanho, vale destacar), que também faz parte do vídeo, comenta em um dos posts dela que riu de um vídeo sobre violência doméstica. Está com preguiça de ler o texto todo? Aqui está o trecho:
"Bom, falando por mim, não em nome do feminismo, eu, só euzinha, já falei que não falo em nome de ninguém?, achei os vídeos engraçados. Na vida real, conheço gente que pensa assim, e muitos falam igualzinho a Amanda. Não creio que o primeiro vídeo seja uma incitação à violência. Pelo contrário, é uma crítica a quem acha que mulher que apanha deve aguentar calada, e que o mais importante é segurar o marido."
(Mesmo se estiver com preguiça, é importante ler para não dizer que eu descontextualizei a fala da blogueira depois)
A própria Lola argumenta, assim como eu (e ao contrário do que ela diz no documentário), que a presença do ridículo é tão óbvia nessa piada que ela riu - e que por isso faz rir - que não há como os autores da piada serem realmente machistas ou à favor da violência contra a mulher.
Afinal, o que torna algumas piadas aceitáveis e outras não, se todas têm um alvo e um preconceito? O documentário traz uma resposta, que embora condensada, faz sentido: é preciso elevar o nível das piadas e rir do agressor e não da vítima. Neste ponto não há o que discordar, mas é necessário observar igualmente a hipocrisia que fica implícita. Os Trapalhões já foram "racistas". Os Mamonas Assassinas foram "homofóbicos". O aclamado Chico Anysio e seu "Café Bola Preta - onde brancos não entram". Artistas em geral fazem piadas preconceituosas. E todo mundo aplaude. Aproveito para destacar o trecho final do mesmo texto já citado da blogueira Lola, que lembrou de mais um exemplo:
"Se bem que, depois de escrever isso, lembrei de Lolita. O romance do Nabokov definitivamente pode ser visto como uma história de abuso sexual infantil. E, ainda assim, toda vez que releio essa obra-prima eu rio alto"
Assista a dois vídeos que seguem a mesma lógica "racista" das piadas, mas são vistos com saudosismos pela maioria dos brasileiros:
Difícil, não? Não é chamando ao outro de "patrulha do politicamente correto" que uma piada ruim vai se tornar boa. É claro que o humorista deve ser criticado, para que assim eleve o seu nível, como proposto no documentário. Afinal, deve-se rir de tudo e não apenas da vítima ou da minoria. Mas, tampouco, os que tecem tal crítica devem fazê-la sob o discurso de que "se está alimentando e reproduzindo o preconceito". Sim, eu rio das piadas do Danilo Gentili. Não o defendo e sei que ele fala muita besteira mesmo, é esse o seu papel. E tem humorista muito ruim por aí. Mas não, eu não nego que o racismo exista em nossa sociedade (pois existe e MUITO), menos ainda quero praticar qualquer tipo de fala que busque reforçar esteriótipos.
Há quem ria da desgraça porque a nega. Que é muito diferente do que ri, por enxergar a discrepância dantesca entre seu modelo de ideal e a brutalidade do que é real e vivenciado, por sua vez sem graça e nem risos (pois aqui não é piada), muito menos aplausos, por muitos de nós.
Acredito que a máxima "se está alimentando e reproduzindo o preconceito" acha mais alimento ainda quando se dá demasiada importância a um tema assim.
ResponderExcluirComo você citou, preconceito existe, mas não é porque se ri de uma piada que se é preconceituoso.
Muitas vezes são os nossos sentidos que riem, mais pela expressividade do humorista, a forma como ele conta a piada do que pelo conteúdo dela em si.
Monstros realmente ficam maiores quando são temidos.