segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Da moral e da prática (versão publicada)


Artigo publicado na revista "Shopping Granja Olga" no dia 3/12/2012, retirado do meu blog e editado para o veículo.





Sobre os preconceitos que ainda não superamos

Homofobia, racismo, machismo, intolerância religiosa. Militar contra todo o tipo de preconceito geralmente é visto como uma causa nobre e digna de aplausos. As imagens e frases com tais temas compartilhadas nas redes sociais são motivo de comoção e, por mais que existam diferenças essenciais na concepção de cada um de nós, a luta pela igualdade é sempre a que prevalece.

Porém, basta que uma notícia com um destes temas surja pela imprensa e todo o discurso cai nas mãos do conservadorismo cru e visceral que tanto busca exercer e manter em pleno funcionamento o dito status quo, o "normalizador social". Quer uma prova? Consulte qualquer reportagem sobre temas como cotas raciais (independente de sua opinião a respeito) ou sobre os movimentos feministas no Brasil e leia os comentários dos internautas. Não é raro encontrar mensagens de ódio, violência e até ameaças. Se as leis brasileiras fossem mais rígidas na internet, poder-se-ia afirmar que muitos crimes seriam rastreados por ali e condenados diariamente, só nestes portais da informação.

Michel Foucault (1926 - 1984), um dos filósofos mais respeitados da pós-modernidade, foi responsável por uma análise crítica dos discursos que compõem o pensamento ocidental. O francês foi o primeiro a compreender e a estudar as raízes e os efeitos produzidos por outros pensadores ao classificarem os seres humanos por suas qualificações psicológicas, morais, culturais e sociais. Para ele, mais importante que encontrar um  conhecimento universal ou a fórmula para um "mundo melhor", é entender as diferentes concepções existentes e sob quais processos históricos elas foram criadas. Na psicologia, foi também um grande estudioso do que determinou como "normalidade". O que está dentro dos padrões da sociedade? O que é aceito e o que não é? Para ele, há também uma forte ligação entre o conhecimento e o poder. "Não há relação do poder sem a constituição correlativa de um campo de conhecimento, como também não há nenhum conhecimento que não pressuponha e constitua ao mesmo tempo relações de poder", afirmava.

Existe, afinal, uma forma normal de ser? Se a resposta for afirmativa, qual recurso devemos utilizar para se chegar a este arquétipo de igualdade? E como ter certeza de que ele está certo? Um exemplo claro: por que os rapazes usam mochilas ou maletas e as mulheres, bolsas? Um homem de bolsa é visto com olhares receosos. Se uma criança do sexo masculino decidir pintar as unhas, os pais vão olhá-lo com estranhamento e farão o que puderem para eliminar a prática, afinal, "é coisa de mulher", mesmo sabendo que esta mesma criança nem desenvolveu sua própria sexualidade ainda. E se a resposta for negativa: é possível recusar os preconceitos no cotidiano?

A questão vai além daquilo que é teórico (e conceitual), é também semântica. Está no vocabulário até daquele se considera o mais liberal e livre de amarras morais. Quem nunca chamou o amigo de "gay" em tom pejorativo? Ou riu daquela piadinha sobre negros? Se este tipo de preconceito está enraizado na língua, é porque ele existe. Mesmo não concordando com nenhum deles, a fala segue o que a sociedade impõe.

O racismo é uma realidade e é impossível dar as costas a ele. A situação é do cotidiano e vale citar aqui um gesto não muito incomum, ocorrido em um ônibus sorocabano, na presença deste que aqui escreve: um grupo de pessoas conversava tranquilamente até que um rapaz negro subiu as escadas do transporte e aparentemente chamou a atenção dos ali presentes (não de uma maneira positiva: assim que ele se acomodou, uma moça fez questão de levantar e passar para um banco traseiro, fora os olhares de estranhamento). Afinal, não é este o Brasil que todos gostam de clamar por sua "variabilidade genética"? Não é esta a nação de 196 milhões de habitantes que aceita a diversidade, como o ex-presidente Lula fez questão de enfatizar em discurso na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, no auge de suas boas relações internacionais? Ele disse: “o Brasil é a mistura do índio, do negro e do europeu. E deu essa gente bonita como eu. E se isso não for razão suficiente, tem ainda a beleza das mulheres e dos homens do meu país”, brincou. A fala é sempre mais bela e encantada que a vivência do real. E falamos aqui do mesmo país em que as pessoas ficam indignadas quando um humorista faz piada sobre negros, fazem protestos e até ameaçam de processá-lo.

Mais difícil que defender moralmente a homossexualidade como uma característica imutável a algumas pessoas é não se ofender quando o amigo te chama de gay (e nem chamar ao outro assim de maneira pejorativa). Mais difícil que criticar o humorista que faz piada sobre negros é não se sentir incomodado quando se senta ao lado de um no transporte público (por mais absurdo que isso pareça para todos - você está lendo um texto e está no mundo dos ideais e do pensamento - a práxis é outra). Mais difícil que erguer a bandeira esvoaçante do feminismo é aceitar que mulher também paga a conta e também dirige o carro. (isto se não for ela a única a possuir um na relação).

A ironia não poderia ser menos sutil: mais difícil que escrever um texto, compartilhar uma postagem ou "curti-la" é tornar prático tudo aquilo que se diz, se lê (e concorda) ou se pensa. Foucault não merece ser lido para preencher currículo (nem Marx, Nietzsche ou qualquer outro pensador).  Com todo o dito pessimismo que paira sobre sua biografia, acho pouco provável que o maior anseio deste homem fosse o de chegar apenas às estantes empoeiradas do vazio intelectual ou às frases de efeito que não surtem efeito algum. E de empoeirada, já basta a vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário