quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cinema mudo


Após um longo hiato desde o texto "Dois rios", retomo com o Timeless Winter. Um dos textos que escrevi que mais me agradou, no sentido geral, o relato que deixei a respeito do Colégio Veritas e da minha "superação" mudou rumos que eu tinha por válidos ao longo de muitos anos. E como uma onda nunca vem sozinha, parece-me que desde então, passei a reparar mais nos detalhes do cotidiano. Um intervalo de 10 minutos no trabalho gera uma reflexão. Uma menina brincando na calçada, outra. E nessa noite, uma ida ao cinema me influenciou a criar este texto.




Estive no Terminal Santo Antônio, centro de Sorocaba-SP. Um envolto de gente apressada, ônibus barulhentos e cheiro de pastel oleoso. Às 18:00, estar lá não é das melhores aventuras a se lançar, principalmente se o cansaço do trabalho te domina. Mas eu precisava comprar um presente para a Bia, que faria aniversário no dia seguinte. (eu nunca planejo muito bem os textos, e só agora, enquanto digito, me cai a ficha de que esse post contará qual presente eu comprei, mas duvido que ela esteja online agora para lê-lo, hahaha). Para economizar tempo, fui à banca do terminal e procurei por algum livro interessante. Veríssimo foi a primeira opção, e o que parecia ser uma excelente crônica baseada em Shakespeare, com uma capa curiosa, um papagaio, me levou à comprar o livro sem mesmo olhar se havia outros.


Missão cumprida, o presente estava comprado e eu iria para casa. Mas aquele papagaio me despertou curiosidade, e decidi abrir o livro, ler algumas páginas. Em questão de instantes eu já não queria me desfazer da obra: A Bia ia ganhar outra coisa qualquer, mas não aquele livro. Talvez, se o desejasse, emprestaria em outra ocasião, mas não naquele momento. E com isso, fui ao shopping procurar outra coisa.


Em época de natal, a central do consumo se abre à grande massa, que se amontoa pelos corredores carregando sacolas e mais sacolas. A felicidade escancarada no rosto dessas pessoas parecia me incomodar, de alguma forma. Não sei se incomodar é a palavra certa, já que aquilo me atraía. E me tirou do sossego ao jogar um fato que eu não havia levado em consideração: Pela primeira vez, eu ia ao shopping sozinho. Não que seja algo tão incomum ou esquisito. Mas sempre foi um ambiente em que eu estive com algum amigo (ou amiga, haha). A princípio parecia divertido. Tive a estranha sensação de que os corredores eram maiores. Também observava melhor o que acontecia em volta, o que as pessoas conversavam e a movimentação das lojas. "Um tempo só para mim", eu pensei.


Com a cena já criada, decidi seguir o enredo. E com improvisos. Que tal ir ao cinema? Se para mim, o fato de caminhar solitário pelo shopping já era inusitado, assistir a um filme sem companhia parecia surreal. E nesse caso, tanto para mim como para tantas outras pessoas. O cinema, como convenção, atrai dois públicos: grupos de amigos/família e casais. Dificilmente se vê uma pessoa solitária em algum canto da sala escura.


A experiência me interessava. Com a maior pipoca disponível em mãos, e uma grande coca cola, procurava um lugar para me acomodar. E nos detalhes, tudo já se diferenciava: eu jamais compraria tanta pipoca acompanhado de alguém. Não aprovaria o mal hálito, talvez. Nem jogaria tantos temperos por cima. Quando não se está sozinho, nos isentamos de detalhes que parecem não fazer diferença. Mas nessa noite eu percebi que eles eram muitos, e que sim, faziam diferença.


Entregando o bilhete, escolhi o melhor lugar em relação à tela. Normalmente, teria escolhido o melhor lugar para se esconder dessa tela, ou melhor, das outras pessoas. As beiradas sempre como favoritas à escolha. Mas eu fiquei com a do meio, e espaçoso, joguei minha mochila para um lado, e a pipoca no outro, ficando com 3 cadeiras só para mim. O indivíduo solitário se torna egocêntrico, e atrai para si um pensamento de que tudo é dele, de certa forma. Não havia necessariamente uma preocupação com nada. Eu só queria estar ali e ver um filme.


Ah, o filme, só um breve comentário. Era David Fincher, meu diretor favorito (em atividade), cujos filmes "Clube da Luta" e "Seven" formaram muitas de minhas opiniões, seja a respeito do cinema, seja a outros critérios, que prefiro comentar em outra ocasião. E eu questionei, ao ler alguns textos a respeito, se seria um bom lançamento. Afinal, o filme "A Rede Social" não fazia parte da rotina de Fincher, que dirige suspenses, cenas intrigantes e finais escabrosos. Seria, na verdade, quase um documentário a respeito da criação do Facebook, de Mark Zuckerberg. Mesmo gostando do diretor, não esperava muita coisa daquela sessão, e o que me interessava mais ali era o fato de eu estar sozinho. Apesar de tudo, o filme superou minhas expectativas, e tive muita raiva de Zuckerberg.


Retirei meus óculos da mochila. Meus olhos não enxergam tão bem, e quase não entendo as legendas. Mas na presença de outras pessoas, eu me esforçaria. Outras pessoas causam o incômodo da aparência: nos vemos obrigados a parecer bonitos, diferentes. A roupa é algo que incomoda, o cabelo, a forma de se expressar. Tentamos até não nos mover muito para não incomodar o próximo. E eu não me acho nada interessante de óculos. Nada. E eis que estava, comendo pipoca em ritmo frenético, de óculos, e bagunçando o cabelo enquanto esperava o filme começar. Nem de tênis eu estava mais, as meias pareciam mais confortáveis. Se havia alguém em volta, eu não reparei. Se alguém reclamou, menos ainda. Mas era um momento meu. Era o meu filme, a minha sessão, o meu cinema, o meu lugar, as minhas coisas. Muitos "meu" para um pequeno espaço, para uma única pessoa. Mas assim eu me senti naquele instante.


Já retratado por Sarte, em "O Inferno são os outros", e por tantos outros autores, a vida em sociedade gera problemas. Nossa condição como indivíduo se altera de uma forma, que nos tornamos irreconhecíveis ao lado de outra pessoa. Manias e gostos desaparecem, e a máscara se mostra rígida. Desenvolvemos algumas características que jamais existiriam se não houvesse essa convivência com os outros. A "solidariedade", o espírito de compaixão como diria Rousseau, é uma delas. Não há como ter amigos e não doar um pouco de si. E o ser humano é egoísta. Obtivemos nossa primeira contradição.


Ainda em Rousseau, em sua obra "A Origem da Desigualdade entre os Homens", ele cita que, no estado natural do homem, não haveria sequer a necessidade de dois homens estabelecerem diálogo. Talvez mesmo um filho não reconhecesse a sua mãe, depois de alguns anos, ao não precisar mais de sua ajuda para se alimentar e sobreviver. E com o sedentarismo surgiram as comunidades e o convívio, a criação de uma linguagem e de regras.


E ali eu estava, isento de qualquer uma dessas regras. Não no estado natural que propõe Rousseau, afinal o filósofo dizia que "O homem que pensa é um ser depravado". O natural não precisa de reflexões. E os sentidos me permitiam viajar por tal "depravação" naquele silêncio.


Passado algum tempo de filme, fui tomado por outra sensação estranha: a vontade de falar. Sobre o filme, sobre as pessoas, sobre os livros que eu comprei. E não havia ninguém. Olhei para o lado, como em uma tentativa inútil de encontrar alguém que me ouvisse. Pensei ter visto alguém me observando, de perto. Alguém que assistia a cada movimento meu como indivíduo, cada atitude estranha. O devaneio durou alguns instantes, até que Justin Timberlake em cena desviou minha atenção. Depois de ler tantas críticas negativas, me interessava vê-lo atuando. E para minha surpresa, seus gestos eram convincentes. Seu personagem, marcante. O filme me prendeu por um bom tempo, e havia abandonado a solidão. Ou a teria abraçado de vez: dificilmente eu prestaria tanta atenção em tal filme se estivesse em companhia de qualquer pessoa.


O que me trouxe ali novamente foi fisiológico: o frio. Curiosamente, quando estamos sozinhos, parece que nosso corpo é mais sensível, ou que prestamos maior atenção nele. Novamente sentia como se alguém me observasse, e conseguisse entender o meu frio. Entender o frio. Seria possível?


Mas eu o entendia. O filme acabou, e ele não me abandonou. Na verdade, me acompanhou quando levantei rapidamente da cadeira e saí do cinema (algo que costuma levar alguns minutos quando na companhia de alguém). E esse frio continuou me agarrando, nos passos que sucederam.


Mais um dia para se lançar às margens daquele rio.












Um comentário:

  1. Nossa, como é difícil analisarmos a nós mesmos - como realmente somos, sem máscaras - quando estamos em companhia de alguém. E eu entendo cada palavra sua, afinal, já fui ao cinema sozinha também. Mas não por um acaso, fui porque naquela época - em torno de quinze anos ou menos - a solidão era muito evidente em mim e eu gostava de curti-la. Era anti-social, diria. Não porque não gostava das pessoas, mas acho que não me adequava a elas - pelo menos, prefiro pensar assim. A solidão é algo realmente sensacional quando conseguimos aproveitá-la - quando a transformamos não em desolação, mas em auto-conhecimento e reflexão. E quando saí da minha casa pra ir ao cinema, sem nem saber ao certo o filme que iria assistir, tive uma das maiores experiências da minha vida. Não como algo bom - nem ruim, mas como uma etapa da minha vida que estava sendo encerrada. Foi ali que percebi quão importante são as pessoas, e decidi que queria ter amigos. Quando vi as pessoas saindo da sala - jovens, casais - rindo, comentando sobre o filme, me senti sozinha, no pior sentido sentido da palavra. E cheguei em casa renovada. Uma nova Julia.
    Talvez hoje, se repetisse essa experiência, me sentisse de um jeito totalmente diferente, afinal, não sou mais uma garotinha de quinze anos...

    Até mais, Luis... :P

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