terça-feira, 6 de novembro de 2012

Da moral e da prática

Sobre os preconceitos que ainda não superamos


obs.: este texto foi atualizado e publicado na revista "Shopping Granja Olga". O tema é o mesmo, apenas mudei a forma de escrever, na edição publicada, eximindo meus relatos pessoais aqui contidos 

O novo texto está neste link: http://timelesswinter.blogspot.com.br/2012/12/da-moral-e-da-pratica.html


Comecei a frequentar, há três semanas, um grupo de estudos sobre o filósofo Michel Foucault. Dentre um vasto universo de informações que ainda desconheço sobre ele, tive a oportunidade de entrar em contato com trechos de seu livro "Vigiar e Punir", além de informações avulsas (por meio de textos complementares) sobre subjetivação e teorias do micropoder.



Para quem nunca ouviu falar deste francês careca que falava difícil (estou blasfemando aqui), assim como eu antes de ser convidado para participar destas reuniões, aqui vai um breve (vamos frisar: BREVE, apenas para efeito de contextualização) resumo de suas ideias: Foucault foi o primeiro a compreender e a estudar as consequências da tendência que outros pensadores possuíam de classificar os seres humanos por suas qualificações psicológicas, morais, culturais e sociais. Para ele, mais importante que encontrar um  conhecimento universal ou a fórmula para um mundo melhor, é entender as diferentes concepções existentes e sob quais processos históricos elas foram criadas. Na psicologia, foi também um grande estudioso do que determinou como "normalidade". O que está dentro dos padrões da sociedade? O que é aceito e o que não é? Para ele, há também uma forte ligação entre o conhecimento e o poder. "Não há relação do poder sem a constituição correlativa de um campo de conhecimento, como também não há nenhum conhecimento que não pressuponha e constitua ao mesmo tempo relações de poder", afirmava. E dele, é só o que direi. (e se eu avançar muito mais do que isso, incorro ao risco de cometer alguma bobagem filosófica). Confira os links que inseri nas palavras chave sobre sua obra para saber mais do autor.

Em um círculo de estudantes de psicologia (e um jornalista – este que aqui escreve - perdido entre eles), situações práticas foram postas à discussão, especialmente sobre o tema da normalidade. Uma das estudantes expôs uma história a respeito de uma criança (um menino) que quis experimentar um esmalte nas unhas e foi visto com sátira por todos, tanto crianças quanto adultos. Chegaram mesmo a cogitar um teste científico para determinar se ele se tornaria homossexual mais tarde ou não (como se existisse alguma comprovação para isso). Indignados com o depoimento, todos expusemos nossa aversão ao que foi dito e partilhamos da ideia de que não existem "coisas de menino" e "coisas de menina", mas "coisas" que a sociedade normalizou e tornou segregadas pelo gênero, sendo para esta massa um absurdo quando os papéis se invertem, mesmo que pela curiosidade de uma criança ainda que desconhece sua sexualidade. Foi unânime. Pelo menos ali, no campo do debate e das ideias.

A reunião se encerrou e eu fui embora. Poucas horas depois, conversando com colegas sobre alguma banalidade, falei para que um deles parasse de "gayzisse". Não me recordo do contexto, mas não era nada fora daquilo que amigos costumam brincar uns com os outros. Eu, que dediquei a manhã do meu sábado para discutir a normalidade, cometendo o excesso de tornar pejorativo um nome que não tem nada de ruim. A teoria que não se observou na prática. Posso interpretar como apenas uma falha na semântica ou uma atribuição de valores inconsciente das palavras, mas seria "chover no molhado". Se este tipo de preconceito está enraizado na língua, é porque ele existe. Posso nem concordar com ele, ir contra, mas a linguagem segue o que a sociedade impõe.

No mesmo dia: no trajeto para casa, ainda no ônibus, um grupo de pessoas conversava tranquilamente até que um rapaz negro subiu as escadas do transporte e aparentemente chamou a atenção dos ali presentes (não de uma maneira positiva: assim que ele se acomodou, uma moça fez questão de levantar e passar para um banco traseiro, fora os olhares de estranhamento). Afinal, não é este o Brasil que todos gostam de clamar por sua "variabilidade genética"? Não é esta a nação de 190 milhões de habitantes que aceita a diversidade, como o ex-presidente Lula fez questão de enfatizar em discurso na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, no auge de suas boas relações internacionais? “O Brasil é a mistura do índio, do negro e do europeu. E deu essa gente bonita como eu. E se isso não for razão suficiente, tem ainda a beleza das mulheres e dos homens do meu país”, brincou. A fala é sempre mais bela e encantada que a vivência do real. E falamos aqui do mesmo país em que as pessoas ficam indignadas quando um humorista faz piada sobre negros, fazem protestos e até ameaçam de processá-lo. Não entremos aqui na discussão dos limites do humor, pois sei que está é polêmica demais e adentraria tópicos que não interessam a esta questão (ao menos não no momento), mas o que é pior: tirar sarro com uma minoria (minoria social) ou interiozar o racismo com o olhar e o afastamento?

Vamos logo ao ponto: mais difícil que defender moralmente a homossexualidade como uma característica imutável a algumas pessoas é não se ofender quando o amigo te chama de gay (e nem chamar ao outro assim de maneira pejorativa). Mais difícil que criticar o humorista que faz piada sobre negros é não se sentir incomodado quando se senta ao lado de um no transporte público (por mais absurdo que isso pareça para todos - você está lendo um texto e está no mundo dos ideais e do pensamento - como tenho reforçado, a práxis é outra). Mais difícil que erguer a bandeira esvoaçante do feminismo é aceitar que mulher também paga a conta e também dirige o carro. (isto se não for ela a única a possuir um na relação).

A ironia não poderia ser menos sutil: mais difícil que escrever um texto, compartilhar uma postagem ou curtí-la é tornar prático tudo aquilo que se diz, se lê (e concorda) ou se pensa. Foucault não merece ser estudado para preencher currículo (nem Marx, Nietzsche ou qualquer outro pensador).  Com todo o dito pessimismo que paira sobre sua biografia, acho pouco provável que o maior anseio deste homem fosse o de chegar apenas às estantes empoeiradas do vazio intelectual ou às frases de efeito que não surtem efeito algum. E de empoeirada já basta a vida.

Um comentário:

  1. Usar Foucault com essa intimidade para pano de fundo de reflexões tão apropriadas é bem um estilo que tem a sua cara: belo artigo! Já lhe afirmei algumas vezes que você deve escrever mais e mais, com toda a dedicação. O que gosto é a maneira como entrelaça filosofia e praxis. Como dizia Foucault, se me permite alongar-me “o papel do intelectual não é mais o de se posicionar ‘um pouco à frente e um pouco ao lado’ para dizer a verdade muda de todos: é antes o de lutar contra as formas de poder ali onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento disso: na ordem do ‘saber’, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso”.
    Grande abraço.
    Isabel

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